quinta-feira, 30 de setembro de 2010

História de Um Verdadeira Pai

Algumas histórias a gente leva pra sempre.

Uma delas eu li no meu primeiro dia de estágio de Centro Cirúrgico. Confesso que me deu uma sensação muito boa, já que todo mundo já chega nesse estágio morrendo de medo de um professor terrorista que temos. Ler aquilo pendurado na porta da sala me fez perceber que esse professor não era apenas um carrasco, mas que dentro dele, mesmo que bem escondido, existia uma gota de sensibilidade.
Aquela história tinha uma mensagem muito importantes para nós quase médicos, prestes a trocar o status de estudante para profissionais. Alguns nem fazem idéia do que significa isso até o dia depois da formatura, quando se deparam com a realidade nada agradável da Saúde do nosso país. Tenho certeza que muitos entram nessa sala todos os dias mas nunca notaram a mensagem na porta. Eu a leio todos os dias...

Vou resumir ela aqui pra vocês. Espero que quem leia, mesmo não sendo médico, ou acadêmico da área da saúde, consiga levar essa lição pra sua vida, pro seu trabalho, pra sua casa e pra sua convivência com os seus semelhantes.

No início de minha vida profissional, fui plantonista de um sério pronto atendimento. Nesses plantões eram lotados dois médicos, e os atendimentos eram para pacientes emergenciais. Os casos mais graves eram transferidos e recebidos com todo o prazer pelos plantonistas da unidade hospitalar, que davam suporte ao pronto atendimento.

Era domingo, 3h30 da manhã, chovia. A cidade estava deserta, não me recordo o motivo, a pediatria se encontrava desativada. Os pacientes eram atendidos alternadamente. Até meia-noite era intenso o movimento, depois caía consideravelmente. Chegou um senhor de uns 40 anos de idade. Trazia embalado nos braços, envolta em um grosso lençol, uma criança de quatro ou cinco anos. Foi à recepção, e disse que o filho estava com febre e dor na garganta.

A recepcionista explicou que não se tratava de emergência, e deveria procurar o outro serviço logo o dia clareasse. Humildemente o senhor sentou-se em uma cadeira, defronte à televisão, que passava a noite ligada. Pensou, refletiu, voltou à recepcionista, tentou explicar e, sem sucesso, solicitou a ela que lhe mostrasse quem eram os médicos. Queria falar e pedir “pelo amor de Deus” para atenderem o filho. O médico da vez respondeu que aquele caso não configurava emergência, e poderia muito bem esperar até o amanhecer. Pensou: “Amigdalite às 3h30 da manhã é brincadeira. Por que não levou o garoto, durante o dia, ao ambulatório apropriado?”. E resmungou para si: “Amigdalite às 3h30 é demais”.

Ao ver a cena e sentir naquele pai um semblante de diminuição, inferioridade e desvalorização como cidadão, chamei o colega e solicitei a ele que atendesse a criança. Ele foi irredutível. Não pensei duas vezes: mandei fazer a ficha, solicitei que colocasse o pai e o filho no consultório, chamei o colega e, frente a frente, iniciei a consulta. Não consulta médico-clínica, mas consulta médico-social. O pai revelou que morava na periferia, saía de casa às 6h. O transporte era uma casinha adaptada sobre a carroceria de um caminhão. Não tinha alimentação e nem garantia de emprego, e era o último a chegar em casa no subúrbio ferroviário, depois de uma peregrinação por toda a cidade, por causa do despejo dos seus pares, que moravam em pontos diversos.

Naquele dia havia deixado a fábrica às 22h, rodara por mais de 150 quilômetros e, ao chegar em casa, sem almoço e sem jantar, sem banho e possuído pelo cansaço, foi avisado pela esposa que o menino estava com febre, e esperava o pai para levá-lo ao médico. Matou a sede, encostou a mochila e a marmita, embalou a criança e, debaixo de chuva, andou a pé três mil metros. Pegou o trem suburbano, que se conectava com o último ônibus e, depois de rodar 30 quilômetros, atingiu o fim de linha, um turístico logradouro, desceu a pé um íngreme enladeirado, longo e deserto percurso da grande praça ao longínquo serviço de urgência.

Na solidão do caminho, na escuridão da noite, sob o frio da úmida e torrencial chuva, arriscando as duas vidas, mergulhou na realidade. Na cabeça, um turbilhão de pensamentos, todos de baixa estima: pobre, não bonito, suburbano, pertencente a uma categoria sem valor, afrodescendente, cansado, naquele dia sem se alimentar, foi tomado pelo desânimo. Porém, tinha um filho, possuía um rei, possuía uma das razões que justificavam viver, que justificavam todo e qualquer sacrifício.

Aliás, levar o seu filho a um médico não era sacrifício, mas um prazer. Pensava no trabalho, na família, no seu pai. Via e sentia, naquela hora, naquele momento, como era difícil a vida, como era dura, como era insignificante diante do mundo. Ainda bem que existia o médico, este sim “me compreende, este sim é homem de coração bom, este sim atende a toda hora, atende em todos os momentos”. Nos momentos de necessidades e sempre alegre, sempre rindo, “ainda bem que existe o médico”. Neste mundo só o médico, somente o médico era verdadeiramente humano. Mas quem era ele para ser atendido, receber a atenção daquela espécie de homem, homem estudado e importante?! Inclusive ser um simples operário era condição suficiente para não ser atendido. Ainda assim, o médico atendia.

Atendia porque era humano, era bom, era gente. Além de médico, era gente. E assim veio pensando em todo o longo e difícil trajeto. Imaginava encontrar um amigo, um amigo que o escutasse, que oferecesse atenção, que desse socorro. Ainda bem que existe o médico... Disse também que saiu preocupado como fazer para voltar, com que carro, com que dinheiro para ir ao trabalho no outro dia... Sem dormir, sem comer, sem condições de faltar. E se fosse demitido? Porém, nada disso era mais importante do que aquele filho, nada tinha mais importância do que a saúde do seu filho.

O colega, frente a frente, escutava silenciosamente. O depoimento era mais um desabafo, um desabafo social, desabafo com ele mesmo, desabafo, quem sabe, com DEUS...? O colega escutava calado, silencioso, olhar perdido. O colega estava em outro mundo, bem distante, não sei onde. Em um lugar longínquo, e cabisbaixo. Repentinamente, os olhos marejados, voz trêmula, rompeu o silêncio, abraçou o guerreiro pai e balbuciou: “Pai, ah, se todos os pais fossem assim! Como seria diferente...”.

Pegou as rédeas do atendimento, arranjou energia não se sabe onde, atendeu, conversou, riu, ofereceu o seu lanche noturno e o café da manhã para aquele pai exemplar. Alimentou a criança, pediu-me que passasse o plantão pela manhã. Com a criança medicada, a bolsa cheia de amostras e muita disposição, foi conhecer, na periferia, onde morava um homem, onde morava um cidadão, onde morava um verdadeiro pai. E saíram os três na mesma condução.

Ainda hoje, nos encontros da vida, escuto do nobre e gentil colega: “Meu amigo, muito obrigado. A medicina não é só conhecimento técnico, mas muito mais. A medicina é o social, o humanismo, a ética, o altruísmo, a essência da cidadania, uma das representantes fiéis de Deus. Ser médico, enfim, é ser um misto de tudo quanto é bom. Ser médico é ser provedor e acolhedor, compreender os encontros e os desencontros do homem. Ser médico é apenas ser médico. Apenas..!”

*Iderval Reginaldo Tenório é médico cirurgião e endoscopista em Salvador


Abraço,
Juli.

Um comentário:

  1. MInha querida linda, quando você indagava sobre o que escrever no seu blog, eu prontamente respondi: escreva sobre o cotidiano. Foi natural, foi espontâneo, foi a primeira ideia que tive. Sabe por quê? Porque desde o primeiro olhar que percebi, por detrás dessa pessoa extrovertida e autêntica, um ser humano sensível, perceptivo, reflexivo e de uma alma infinitamente generosa.
    Ao escolher essa história para postar, você aparece tanto quanto a história. A sua escolha diz muito do que você é e do que você acredita.Não tenho dúvidas de que você faria o mesmo por um seu irmão necessitado. A história me trouxe lágrimas aos olhos. Mas as lágrimas cairam compulsivamente com a emoção de perceber o que aquela garota(Juju) que conheci há alguns anos atrás se tornou. Parabéns! Você é um ser humano fantástico! Se um dia eu tiver na situação dessa pessoa quero cair nas suas mãos. Te adoro!

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